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APRESENTAÇÃO DA ANTOLOGIA


Palácio Galveias, Lisboa 26 de Maio de 2005

Um apresentador tem uma função diplomática. Tenta estabelecer um diploma consensual entre duas partes com distintas conveniências. Tenta relacionar dois interlocutores, neste caso, o escritor e os leitores.

Pertence aquele género clássico que apresenta o enredo e que define mesmo a estrutura do destino nas tragédias gregas, quero dizer que, mais de acordo com Sófocles, é uma espécie individual do Coro grego.

O que é menos comum, mas sucede, é apresentar o livro ao próprio autor. Mas aconteceu já, com certeza, ao longo da história literária, designadamente editorial.

Dois ou três exemplos próximos, entre outros. Sem dúvida que os escritos ou "apresentações" de livros elaborados pela professora Maria Alzira Seixo ( Outros Erros - Ensaios de Literatura, Asa, 2001) e os textos do poeta António Ramos Rosa ( Incisões Oblíquas , Caminho, 1987 ) tiveram ao longo destas últimas três décadas muitas vezes essa funcionalidade, de mostrar o conteúdo do livro ao respectivo autor. É que este quase sempre tem outra ideia dos seus escritos. Vergílio Ferreira, o terceiro exemplo, admirou-se um dia por ter sido "insensivelmente investido na qualidade de uma espécie de delegado nacional ou regional do Existencialismo, eu que jamais me disse existencialista." ( in Espaço Invisível-II).

Dadas as características desta antologia, podemos afirmar, em bom rigor, que estamos a apresentar a obra a cada um dos seus autores individuais, que nela colaboraram, a cada um dos que é suposto só conhecerem bem os seus poemas, com os quais contribuiram para a presente edição, e que só lerão os poemas alheios após este lançamento festivo do livro em causa.

Mas este livro ( que inesperadamente tenho a honra de poder apresentar ) sendo como é uma colecção de poemas, acaba por ser aquele rio da antiguidade de Heraclito em cujas mesmas águas não se mergulha duas vezes.

Está patente nesta antologia uma interdiscursividade que ao respeitar a afirmação do poeta norte-americano segundo a qual "o tema do poema é a poesia", passa por aspectos muito variados que tocam o ritmo, a semântica e até as propostas fono-prosódicas deste caudal de rio poético.

A abundância dos versos em que os indicadores sugerem a saudade, exprimem o "fazer poético" que pode ver as cores do silêncio, induzem o leitor com elementos referenciais à água, aos olhos infantis, aos sonhos de menino, por exemplo, dá um conceito único a esta recolha que faz justiça aos elos que lhe dão nome.

Não sendo uma composição colectiva, tendo sido cada um dos poemas escrito em lugares geográficos diferentes, e quiçá distantes, o colectivo está presente na diversidade.

Sabe-se que os japoneses, no século VII, tiveram uma ideia para a utilização das vozes múltiplas que se interligam no poema com a criação da renga, que é um exercício de escrita colectiva, num só poema ou conjunto de poemas colectivo. Seguindo este modelo um grupo de quatro poetas quadrilingues, entre os quais o mais conhecido era Octávio Paz, fez um poema em conjunto, em Paris no ano de 1969. Cada um deles escreveu na sua própria língua o mesmo poema, assim este ecoou como se fosse um único som, uma única linguagem.

Nestes "Elos de Poesia", salvaguardadas as devidas proporções, sinto essa diversidade unívoca ao ler todo o conjunto, ainda por cima monolíngue.

Elos esses como veias onde corre o mesmo sangue lusitano, brasileiro, africano, por assim dizer a abundância da portugalidade em que os autores, diferentes na sua prosódia poética, afinal se interligam.

Na sua forma, todos os poemas podem parecer iguais, mas a torrente das suas águas líricas renova-se de verso para verso, de estrofe para estrofe, de poema para poema. Todos em plano de igualdade, como é timbre de uma antologia, porque as antologias não podem nem devem ser hierarquizadas. Todos os poetas são criadores, nesta presente antologia, e tiveram todos os seus momentos de dúvida criadora.

Com certeza alguns dos autores dos poemas desta mostra já tiveram ocasião de publicar livros autónomos ou quase todos, pelo menos, algumas plaquettes - perdoem-me o galicismo. Certamente perante o objecto de cultura que são os muitos poemas avulsos que já passaram ao papel, ter-se-ão deixado guiar inevitavelmente pela pergunta pessoal, posta na dúvida da criatividade - "Os meus versos são bons ? ".

Um grande poeta europeu, Rilke, sabia que tal pergunta está sempre na mente do poeta, mas que este, o que escreve versos, deve entrar em si próprio e procurar a necessidade que o faz escrever, à partida não se preocupando muito com o olhar para fora.

Mas permitam-me que leia o que o escritor alemão escreveu no conhecido volume "Cartas a um Poeta ": - " Pergunta-me se os seus versos são bons. Manda-os para as revistas. Compara-os a outros poemas e alarma-se quando certas redacções afastam os seus ensaios poéticos. De ora avante, peço-lhe que renuncie a tudo isso. O seu olhar está voltado para fora: eis o que não deve tornar a acontecer. Ninguém pode aconselhá-lo nem ajudá-lo - Ninguém. Há só um caminho: entre em si próprio e procure a necessidade que o faz escrever."

Com efeito, é preciso que esta necessidade tenha raízes fundas. E não existem razões mais fundas do que as do próprio ser, as que se encontram dentro dos próprios autores, das suas personae, aqui sem o sentido de máscara literária como ensinava Ezra Pound. Saul Bellow, outro escritor norte-americano, notável romancista nobelizado em 1976, recentemente falecido, chamou-lhe "transacções íntimas", quando - escreve o criador de "Herzog" - houve um tempo em que as pessoas tinham o hábito de se dirigir a si próprias. Não apenas na forma de um diário, mas sobretudo na forma do poema, quando este é sobretudo um registo da intimidade, do que brota das tais raízes.

A presente Antologia não foge a este desiderato, de apresentar publicamente o registo das transacções íntimas, de uma escrita que começou por ser para a gaveta do poeta - gaveta que é sempre do tamanho do universo. Daí que "Elos de Poesia" tenha saído para a luz deste fim de tarde, num sentido universal, porquanto cada um dos poemas que lemos partem do Eu poético e sofrem aquela crise de identidade que os transforma em poesia que corta transversalmente vários temas desde o social, empenhado, ao mais estético possível, do texto poético puro, isto é, do poema pelo poema.

Em qualquer caso, o que todos os poemas presentes neste livro denotam, é a vontade de uma escrita para compartilhar sentimentos- que vão desde a percepção do dia pautada pela chuva que cai de uma goteira, à necessidade de reiterar que é ainda tempo de inventar o amor - para que todos esses sentimentos não pairem apenas abstractamente, mas sejam interiorizados pela leitura dos mesmos. Que possam tornar-se colectivos, como bem escreve uma das participantes da presente obra: " Tudo o que amei foi colectivo, não sei ser eu, se não formos todos."

E, desde logo, essa necessidade de escrever, de se poder estar em todos os leitores de uma forma universal, o que todos estes poetas sentem sem excepção - falo por mim próprio porque sou também do mesmo ofício -, releva-se como um acto missionário. A atitude de poder partilhar o momentum da criação com o próximo, por isso uma antologia em que os próprios autores se organizam, até do ponto de vista financeiro, para dar à luz uma obra colectiva, é, sem dúvida, uma frutuosa colheita do que aquelas raízes são capazes. Esta antologia é uma imensa seara madura e um pomar, nas suas intertextualidades variadas, das quais poderemos colher hoje os frutos e os trigos. Ouçamos, então, o fruto crescer, quebrando o cristal do silêncio, sempre que se ouve poesia.

- João Tomaz Parreira

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